segunda-feira, 14 de julho de 2008

Fotografia amarela de fundo de gaveta

Pensei que nunca perderia seu sorriso em meio a outras bocas forradas de dentes que não me dizem nada. Você não devia estar lá mesmo. Faz tanto tempo. Meus olhos já não ajudam. O que não enxergo com a vista, reconstruo com o pouco avivado pela memória. Ah! Esta maldita que me foge quando eu mais dela preciso. Se não é para fazer reviver o que jaz nas curvas da existência, para que serve então as lembranças da minh'alma. Espere! Agora sim. Vejo as bochechas arquearem-se. Descortinam-se lentamente. Aumenta a expectativa da platéia. Eu sou a platéia.
O espetáculo já vai começar. Desde que entrou em cartaz, compro todos os ingressos. Não divido. Rasgo todos. Reservo um único bilhete no bolso direito. No esquerdo, guardo aquele lencinho azul desbotado. Presente de aniversário de vinte e poucos anos, lembra? Eu não gostei muito. Mas foi nele que minhas lágrimas pousaram quando apareceram com aquela coroa cravejada de flores. "Deixem de bobeira! Ela só está dormindo. Dormindo. Eu também quero dorm...". O pedaço de pano velho e amarrotado - cor de céu quando chove - mais uma vez, faz companhia ao cinza dos meus olhos. Nuvens à vista naquele céu de lembranças. Elas não me deixaram. Nele, desaguam as águas que procuram ocupar-me, quando volvo os olhos atentamente para aquele espetáculo repetido, incansavelmente assistido.
Toc toc. "Todo mundo tá esperando você. Traz logo esse troço". Pedra no lago. O encanto de Narciso é quebrado. Volto a mim. Resoluto. A figura mitológica teria procurado um espelho. Eu só tinha aquela fotografia para tentar me encontrar. Encontrá-la. A imagem amarelada de jovens sorridentes. Por que sorriem? Ah, se soubessem o que aguardam vocês. Poupariam estes sorrisos. Este morreu de amores por aquela ao lado da professora. Aquela virou freira e..não gosto nem de lembrar. Aquele ali se casou com aquela moça linda. Cobiçadíssima.

"divagando devagarinho, sem pressa, a coisa acaba.."