quinta-feira, 20 de setembro de 2007

Chuva

Ninguém vai dormir aqui.

Não quero esconder minhas infelicidades

atrás de um rosto que se desfaz e sorri,

embaixo de um já amargurado travesseiro

ou esquecer tudo nas visões ilusórias dos sonhos que virão,

mais parecem saudades.

Quero ouvir a chuva lá fora bater com força na telha.

Poderia ser minha carne.

Quero ouvir a chuva molhar a terra.

Poderia ser meu sangue derramado na guerra.

Quero ouvir a chuva cair.

Poderia ser meu corpo, minha causa.

Que causa?

Não tenho causa, sou chuva sem propósito, que cai, e só cai.

“Feche os olhos, meu filho, e pense em algo bom”.

“Mãe, já pensei. O que eu faço quando abrir os olhos e vir que nada do que eu pensei existe?”.

“Existem coisas que você não pode ver. Só sentir. A chuva está lá fora.”

Chuva

Passos apressados, o rapaz olha pro relógio, a senhora da um pulinho para cima da calçada evitando ser atropelada, segue em passos tranqüilos após isso como se nada tivesse acontecido, afinal, isso é São Paulo, cidade que não dorme, todos apressados e mal alimentados, vários escravos do relógio transitando como vítimas aleatórias de um tabuleiro de asfalto e concreto.

A água do céu castiga, os guarda-chuvas se esbarram pelo corre-corre do centro, um homem se esconde embaixo do terno, outro corre com um jornal sob a sua cabeça, na esquina da frente pode-se ver um táxi dando um banho nas pessoas mais desatentas ao passar sobre uma poça d’água, uns gritam, outros xingam indignados, os mais acostumados seguem a seu destino sabendo que permanecerão molhados independente de quando resmungarem. Moto boy com sacolas amarradas em suas botinas, office boys com o tênis aberto em baixo tendo de trabalhar o dia todo com os pés ensopados, protegendo os documentos contra a rasura da chuva e esquecendo-se de se proteger contra a gripe, a pneumonia...

Chove em São Paulo, o trânsito sofre a nítida conseqüência da vagarosidade, já não temos mais horário, agora dependemos da boa vontade do tempo.

As ruas viram piscinões, os barracos são alagados, casas de madeira viram brinquedos de papel, móveis são perdidos e sonhos afogados, chove em São Paulo.

No cefé a água escorre pelo vidro e a água caindo incansável torna mais aconchegante o cenário de um casal apaixonado, chuvinha gostosa que embala o namoro, a fumaça quente de um copo de chá, dedos cruzados, chove em São Paulo... a melhor das condições climáticas para se descansar de não fazer nada, um friozinho e uma coberta, o barulho da água nas telhas, o homem dorme enquanto a chuva castiga, sua preguiça se estica por mais horas do que de costume, o corpo aquecido pelas cobertas, sem duvida, essa “chuvinha” convida para a cama.

Mendigos foram acordados por ela, suas cobertas estão encharcadas, seria uma piada de Deus? Por que dessa chuva toda levando seus castelos de papelão, tornando a disputa por um espaço em baixo do toldo quase uma questão de violência, “maldita seja essa chuva!” se ouve um grito engasgado por de trás de barbas brancas, roupas rasgadas e uma pele suja, pés descalços pisando nas poças correntes trazendo leptospirose e hepatite.

Enquanto paralelamente, sob o solo rachado e matos caídos, o menino ajoelha-se frente aos galhos secos de uma árvore morta, os olhos fechados, a testa lavada pelo suor que escorre de seus olhos a sua barriga, os dedos cruzados, a garganta seca “meu Deus, faça que um dia a chuva chegue até aqui pra minha mãe descansar, pra regar as plantinhas e lavar nossa terra”.

A pele escura e um pano enrolado em sua cintura, um braço aberto mantém o equilíbrio do corpo o outro apóia um latão d’agua sobre sua cabeça, a imagem da mãe surge aos poucos em uma linha do horizonte, ali estava o remédio pras feridas do filho, a água do feijão, o “lava roupas”, o banho, o suco e a vida, dentro de um balde buscado a kilometros de seu lar de madeira, tesouro que talvez só seja visto no próximo mês,

Será economizado e valorizado, como tudo que se adquire no Nordeste, o menino sorri satisfeito e abraça sua mãe.

Na cidade o drama do caos, o pesar do dilúvio, casas já não existem, famílias tendem a se abrigar em qualquer outro canto, seja albergue, seja uma ponte. O que fora conquistado a anos de suor, puxando uma carroça, catando papelão, vendendo latinha, a chuva levou, o pai de família pega um filho em cada braço, o mais velho caminha, a esposa resmunga, ele agradece a Deus “Senhor, cheguei a essa terra sem nada, tudo que tenho me destes de bom grado, vim do pó e a ele regressarei, nada vou levar daqui meu Pai, graças a Deus por ter saúde para conquistar tudo novamente, sozinho não sou nada, me ajude e me de forças mais uma vez meu Papai, obrigado por olhares por mim”.

O relógio desperta as 10:30 da manhã, em um colchão macio e um quarto espaçoso, o rapaz procura o celular em baixo do notebook e entre os edredons até achá-lo caído no chão perto das chaves do carro, disca um número decorado em alta velocidade e agita alegre “Eae, preparado pra praia meu brother?” a voz do outro lado manda que olhe pela janela, ao abri-la o sorriso morre e com um soco no batente as palavras expressam o desanimo “não acredito nisso, ta chovendo! Que vida de merda, as coisas nunca dão certo pra mim! Valeu mesmo em Deus!”